Desde o início da invasão russa, em 24 de fevereiro, a Ucrânia acusa o país comandado por Vladimir Putin de bombardear locais ocupados por civis, como hospitais, maternidades e áreas residenciais. Com o aumento do número de mortos e longas filas de refugiados nas fronteiras, as duas partes do conflito negociaram a abertura dos chamados corredores humanitários. A medida nada mais é do que uma faixa territorial onde há um cessar-fogo parcial para evacuação de civis, passagem de alimentos, suprimentos e ajuda médica. Normalmente também há uma terceira parte envolvida na operação, como a Organização das Nações Unidas (ONU) ou a Cruz Vermelha.
“Os corredores humanitários são a melhor alternativa que a gente tem para lidar com essa questão de evacuação”, opina Leandro Consentino, doutor em Ciência Política pela USP e professor de Relações Internacionais no Insper. “É necessário que se tenha o compromisso dos dois lados para que esses corredores sejam estabelecidos. A primeira coisa é o desenho. As duas partes do conflito precisam concordar com o local e o funcionamento e garantir que eles sejam respeitados”, explica em entrevista à Jovem Pan. Os corredores para evacuação de civis já foram utilizados com êxito em outros conflitos armados, como no Iraque, nos anos 2000, e na guerra civil da Iugoslávia, na Bósnia e na Croácia, nos anos 90.
O governo ucraniano, no entanto, vem acusando a Rússia de não respeitar a trégua e seguir com os bombardeios nessas áreas, como na cidade de Mariupol. As autoridades russas rebateram as acusações e alegaram que “nacionalistas” ucranianos impedem a passagem dos civis. “É difícil saber o que se passa exatamente, mas, pelo que a gente viu nos últimos dias, a Rússia não tem sido o ator mais confiável nesse conflito. Nesse momento, talvez a Ucrânia esteja mais correta desse ponto de vista, mas é difícil a gente ter certeza por causa das informações desencontradas. Há também uma guerra de narrativas entre os dois lados”, analisa Consentino.
ONU de mãos atadas
Alberto do Amaral Junior, professor do departamento de Direito Internacional da USP, analisa que, ao bombardear alvos civis, a Rússia violou o direito internacional, o princípio de autodeterminação dos povos e o princípio de não intervenção. O especialista explica que, em conflitos como o da Ucrânia, existem as chamadas leis de guerra, especificadas em tratados internacionais, nas convenções de Genebra e Leis de Haia. “A função dessas leis de guerra é estabelecer que, mesmo havendo um conflito armado, ele seja limitado aos combates entre as tropas militares. O ataque indiscriminado a civis é uma violação flagrante das normas de guerra internacionais”, ressalta.
Amaral afirma que, efetivamente, não existe nenhuma consequência prática caso o período de cessar-fogo não tenha sido respeitado pelas partes. Isso porque o Conselho de Segurança da ONU – única entidade que poderia tomar algum tipo de medida no caso – tem a Rússia como membro permanente. Sendo assim, o país tem poder de veto. “A ONU não tem o poder de impor uma sanção ou uma pena por a Rússia estar descumprindo a existência dos corredores humanitários. As Nações Unidas ficam de mãos atadas neste caso porque dependem dos seus membros, e alguns deles têm assento permanente e poder de veto”, explica o professor. “O Conselho jamais tomaria uma medida contra a Rússia porque o país vetaria. Se o caso fosse levado à apreciação da Corte Internacional de Justiça, que é um braço da ONU, não seria cumprido pela Rússia. A única forma de se fazer cumprir seria a atuação do Conselho de Segurança, como determina a própria carta da ONU. Isso causa uma indignação internacional, comoção por parte da opinião pública, mas não existem meios coercitivos para se fazer cumprir essa regra de maneira efetiva”, segue.
Para Amaral, além da ausência de cessar-fogo, a Ucrânia enfrenta outro problema para a evacuação da população. Isso porque a Rússia quer que os corredores humanitários levem os civis ao próprio país ou a Belarus, também aliada de Putin. “Isso não tem o menor sentido, porque a Rússia é a potência invasora. O que deveria ser feito é proporcionar os ucranianos a ida a outro país que eles considerem adequado”, analisa. “Aqui nós estamos diante de um país que tem um exército poderosíssimo. Então, o que precisa é haver boa vontade das partes, principalmente da potência invasora, que é a Rússia”, conclui.
A situação humanitária da Ucrânia
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) afirma que a situação humanitária em Mariupol, onde foram estabelecidos corredores humanitários, é “terrível e desesperadora”. O vice-chefe da subdelegação, Sasha Volkov, afirma que não há energia elétrica, água e gás na cidade. “Todas as lojas e farmácias foram saqueadas há quatro ou cinco dias. Algumas pessoas ainda têm comida, mas não tenho certeza de quanto tempo vai durar”, afirmou em áudio divulgado à imprensa na quarta-feira, 9. Diogo Alcântara, porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, afirmou à Jovem Pan que a prioridade atual é a distribuição de itens básicos, como água, alimentos e medicamentos.
“Há duas semanas, essas pessoas estavam vivendo normalmente. Hoje muitas estão sem casa, sem comida, morando em abrigos. As cidades estão desabastecidas, muitos não têm segurança nem para sair do abrigo para ir atrás de comida ou de água”, disse. O CICV não participa das negociações entre Ucrânia e Rússia para a criação de corredores humanitários, mas atua como facilitador em alguns casos. “Por mais que a gente não esteja envolvido nas negociações, a gente sempre lembra que os civis precisam ser protegidos durante o conflito” , conclui Alcântara.