Familiares de vítimas da pandemia pedem justiça em depoimentos na CPI: ‘Mortes não são um número’

O taxista de 57 anos perdeu um filho, de 25 anos, em abril do ano passado

Em um dia de depoimentos marcados pela emoção e pelo choro, familiares de vítimas pediram justiça às mais de 600 mil mortes causadas pelo coronavírus. Nesta segunda-feira, 18, a CPI da Covid-19 ouviu os relatos de Mayra Pires Lima, enfermeira de Manaus, que perdeu a irmã por conta da crise da falta de oxigênio de Manaus; Giovanna Gomes Mendes da Silva, de 19 anos, órfã de mãe e que terá a guarda da irmã de 10 anos; Kátia Shirlene Castilho dos Santos, órfã de pai e mãe; Rosane Brandão, cujo marido, professor da Universidade Federal de Pelotas, morreu por complicações da doença; Arquivaldo Bites Leite, infectado pela doença e em tratamento com graves sequelas; Antônio Carlos Costa, fundador da ONG Rio da Paz; e Márcio Antônio do Nascimento Silva, taxista que perdeu o filho de 25 anos em abril do ano passado.

Na manhã desta segunda, a ONG Rio da Paz realizou um ato e pendurou 600 lenços brancos no gramado do Congresso Nacional. Antes, eles foram expostos na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, no dia 8 de outubro. “O que vimos foi a antítese de tudo o que se esperava de um presidente. Jamais o vimos derramar lágrimas de compaixão ou expressar profundo pesar pelo povo brasileiro, não tivemos conhecimento de favela que ele tenha visitado, hospital para o qual tenha se dirigido, a fim de comunicar ânimo aos profissionais de saúde. Nenhuma palavra de direção ou encorajamento às milhões de famílias afetadas pela crise. Pelo contrário, vimos o presidente chamar o povo de marica, fazer deboche com os que agonizavam pela falta de ar, andar de jet ski, jogar futebol, comer pastel em boteco, insuflar golpe militar, prescrever medicamento sem eficácia comprovada, combater o uso de máscara, menosprezar o distanciamento e trivializar o poder letal do vírus. Ridículo. Ninguém aceitaria isso em uma nação livre e desenvolvida. Em suma: em dias de fome, doença, morte e luto, em vez de cuidar do povo que o elegeu, ele se dedicou tão somente a defender o seu mandato e garantir a sua reeleição. O que declaro resulta de ódio pelo presidente? Não. Somente faço questão de ressaltar sua impressionante falta de empatia”, disse o fundador da Rio da Paz.

Márcio Antônio do Nascimento Silva entregou os lenços ao vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Em seu relato, aos prantos, Nascimento deu detalhes sobre o caso de seu filho, Hugo Dutra do Nascimento Silva. Em junho de 2020, uma foto do taxista de 57 anos viralizou nas redes sociais (veja abaixo). À época, dois meses após enterrar seu filho, ele viu um homem chutando e derrubando cruzes fixadas pela Rio da Paz na areia da praia de Copacabana. “Naquele dia, eu não participava do ato. Eu estava me recuperando da Covid, estava muito fraco. O meu médico disse para eu ir para praia tomar sol pela vitamina D. Fui com a minha esposa e, quando vimos o ato da Rio da Paz, me lembrei do meu filho, fiquei consternado. Eles estavam fazendo uma homenagem aos mortos, fiquei feliz. Quando cheguei perto, umas cinco ou seis pessoas hostilizando e falando um montão de besteira. Era uma coisa irracional. Estavam hostilizando uma homenagem às vítimas. Parecia que eram inimigas do que estava acontecendo. Escutei no meu coração aquela frase do presidente [Jair Bolsonaro], o ‘e daí?’. Isso me gerou muita raiva e muito ódio. Isso me fez muito mal”, relatou. “Quando vi o cara derrubando as cruzes, minha esposa ficou preocupada, porque tem a truculência, tem a violência. Quando vi a cena, não acreditei. Fiz um ato de resistência. Sou quilombola, estou acostumado a sentir isso. Olhei em volta, vi que ninguém fazia nada e pensei ‘ele vai tirar, eu vou colocar. Ele pode ficar o dia todo chutando as cruzes, eu vou colocar tudo de volta’. Será que ele não sentia que estava pisando na cova do meu filho? Eu não esperava a repercussão toda”, seguiu. “A minha dor não é mi-mi-mi. Ela dói pra caramba. Não aceito que ninguém ache que isso é normal. Não é mi-mi-mi, não”.

Homem sem camisa segura cruz de madeira

Taxista de 57 anos reagiu a um ato de vandalismo contra manifestação da ONG Rio da Paz

Emocionado, Márcio relatou as últimas mensagens trocadas com o filho, nas quais Hugo relatava que estava sem forças, sofrendo com a falta de ar. “Eu não posso aceitar que alguém faça brincadeira com isso [com a falta de ar]. Isso não é normal, não. Fico pensando nas pessoas de Manaus. Não é só meu filho, não estou falando só dele. Meu filho continuou, me mandou mensagem dizendo ‘estou melhor, pai’. Mas depois me disse ‘me tira daqui, estou muito mal’. Eu conversei com a assistente social, fui até a sala vermelha quando deram bobeira, fiquei fazendo sinal para ele, dizendo ‘fica bem, teu pai está aqui’. A última mensagem do meu filho foi: ‘Pai, acho que não vou conseguir’. Eu disse ‘você vai conseguir, você é forte’. O sentimento que fico não é só pela dor da morte, é pelo o que vem depois. É pelo deboche, é pela ironia. No meu coração foi muito difícil. Por isso essa CPI foi tão importante. Alguém chegou e não falou e dai. Alguém apareceu e disse que ia fazer alguma coisa para nós. Isso não é circo, estamos falando de vidas. Quem fala que é circo, não se importa com as pessoas que morreram. Eles são os verdadeiros palhaços. Desculpe falar assim, mas não dá”, disse o taxista.


Fonte: Jovem Pan

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