Em dezembro de 2019 foram reportados os primeiros casos de um “vírus misterioso” que causava problemas respiratórios. Mais de um ano e quatro meses depois, a origem do Sars-CoV-2 ainda é motivo de desconfiança para muitos. A fim de encontrar respostas para os questionamentos da comunidade internacional, a Organização Mundial da Saúde (OMS) enviou uma equipe de especialistas à cidade de Wuhan, na China, onde o coronavírus foi detectado pela primeira vez. As autoridades trabalharam em cima de quatro possibilidades principais de como o vírus teria chegado à cidade: por meio de animais intermediários, por alimentos congelados, infeção direta de seres humanos ou o vazamento de um laboratório. Segundo o relatório divulgado pela organização no final de março, esta última hipótese é “extremamente improvável”. Mas há nomes relevantes da comunidade científica internacional que defendem, sem levantar nenhuma bandeira ideológica ou teorias conspiratórias, que a chance de um acidente deve ser ao menos considerada.
“É muito improvável que algo pudesse escapar daquele lugar”, pontuou o chefe da missão, Peter Ben Embarek. De acordo com ele, a equipe entrevistou funcionários e examinou os processos de auditoria de saúde quando visitaram o Instituto de Virologia de Wuhan. A hipótese mais aceita pela OMS é de que o coronavírus se espalhou pelos humanos por meio de um animal hospedeiro. O relatório, no entanto, não convenceu 14 países que assinaram um documento endereçado à OMS alegando que a missão internacional dos cientistas aconteceu com um atraso significativo e que não teve acesso a dados originais e completos nem a amostras do vírus. O grupo de países que questionou o documento é composto por Austrália, Canadá, Coréia do Sul, Dinamarca, Eslovênia, Estônia, Israel, Japão, Letônia, Lituânia, Noruega, Reino Unido, República Tcheca e Estados Unidos.
Nos EUA, inclusive, a desconfiança virou pauta no Congresso Nacional. Os parlamentares do Partido Republicano defendem que é necessário uma nova investigação, sem descartar a hipótese de vazamento de um laboratório. “Tanto os republicanos quanto os democratas deveriam exigir respostas sobre as origens da Covid-19 para que, pelo menos, possamos evitar que isso aconteça novamente”, argumenta o deputado Mike Gallagher. Ele, em um extenso artigo, alega que, como o Instituto de Virologia, um importante centro mundial de pesquisa sobre coronavírus, fica na mesma cidade em que o primeiro caso foi detectado, a possibilidade de que o vírus tenha escapado do laboratório não pode ser descartada.
Essa desconfiança quanto ao surgimento do coronavírus em Wuhan também é compartilhada por cientistas de diversos países do mundo. Em carta publicada na revista “Science”, 18 pesquisadores questionam o relatório da OMS, que minimizou as chances de um acidente laboratorial, e pedem uma investigação mais severa, independente e transparente. O documento, assinado por cientistas renomados como David Relman, professor de Microbiologia e Imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, Marc Lipsitch, professor do Departamento de Epidemiologia de Harvard, e Akiko Iwasaki, professor no Departamento de Biologia Molecular, Celular e de Desenvolvimento da Universidade de Yale, alerta que não houve nenhuma descoberta durante a expedição da instituição que apoie claramente um transbordamento natural ou um acidente de laboratório, hipóteses que foram consideradas “provável a muito provável” e “extremamente improvável”, respectivamente. O documento ainda ressalta que as outras duas teorias não receberam uma consideração equilibrada. Para eles, nenhuma conjectura pode ser descartada.
As pesquisas mais recentes, no entanto, descartam a hipótese de o vírus ter se disseminado a partir de um acidente de laboratório e apoiam a teoria de que o Sars-CoV-2 foi transmitido a humanos por meio de morcegos. No final de abril, especialistas do Centro de Pesquisa em Bioinformática da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte (UNC Charlotte) realizaram uma das maiores e mais abrangentes análises evolutivas do micro-organismo até hoje. A equipe analisou mais de 2.000 genomas de diversos coronavírus que infectam humanos ou outros animais. A pesquisa aponta que, dado que os vírus hospedados em morcegos são frequentemente associados a doenças transmitidas entre animais e pessoas e que o Sars-CoV-2 é filogeneticamente mais próximo dos CoVs hospedados por morcegos do que dos CoVs hospedados por qualquer outro animal, o morcego é o hospedeiro mais provável para o vírus que causa a Covid-19 em humanos. O artigo científico foi publicado na revista “Cladistics”.
Repercussão
A hipótese do surgimento do coronavírus em um acidente de laboratório na China, citada na revista “Science”, também gera repercussão no Brasil. O assunto chegou a ser mencionado nesta semana, inclusive na CPI da Covid-19 no Senado Federal, que investiga a atuação do governo brasileiro durante a pandemia. Em declaração durante depoimento do ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República, Jair Bolsonaro, citou a discussão do Congresso Americano sobre sobre o tema. “Eles estão empenhados em descobrir a origem, de onde surgiu o vírus. Então nada está descartado ainda”, afirmou. Assim como em ocasiões anteriores, o parlamentar se referiu ao Sars-CoV-2 como “vírus chinês”, negando que o título seja ofensivo ao povo asiático. “Não é ofensa, estão fazendo referência de onde possivelmente pode ter chegado esse vírus e lá na frente acho que investigações em todo o mundo vão levar a saber qual é a origem do vírus. Se foi na China ou se não foi”, disse o senador.
Do ponto de vista da ciência brasileira, no entanto, a posição a respeito do coronavírus é cautelosa. O presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV), Flávio Guimarães da Fonseca, ressalta a necessidade de “entender a natureza” do artigo da revista “Science” sem desvirtuar o posicionamento dos cientistas para teorias conspiratórias ou que “acusem” o povo chinês. “Hora nenhuma eles acusam a possibilidade de que o vírus tenha sido desenvolvido em laboratório. A questão da origem natural do Sars-CoV-2 já está comprovada cientificamente, ele não é um vírus produzido em laboratório como arma biológica. O estudo do genoma já prova que é um vírus absolutamente natural”, afirma o cientista, destacando, inúmeras vezes, que a carta defende apenas a “transparência para compreensão do que aconteceu na origem do coronavírus”. “O que a carta pede é uma investigação para entender se o vírus passou de animais para seres humanos ou se estava sendo estudado no laboratório e conseguiu escapar. Não é que ele foi criado como arma biológica.”
Flávio Guimarães da Fonseca, que também é professor de microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que os estudos laboratoriais com organismos vivos, como o coronavírus, são comuns, sendo realizados por diversos pesquisadores do mundo, inclusive no Brasil. Ele cita a pesquisa desenvolvida por ele na universidade mineira sobre um vírus que causa doenças no gado brasileiro. “Faz parte do processo de vigilância dos novos vírus. Os laboratórios têm que estar equipados com salvaguardas para que o vírus possa ser estudado de forma contínua e para evitar que escape ao meio ambiente. Então, os cientistas não estão acusando que essa é a origem da pandemia, estão pedindo uma investigação independente e transparente, já que essa possibilidade de acidente no laboratório não foi completamente afastada”, diz o cientista, explicando que a principal teoria para o surgimento do coronavírus é a origem natural. “A hipótese mais aceita é de que é um vírus zoonótico que já circulava em morcegos, porque encontraram uma similaridade genética muito alta com o Sars-CoV-2”, explica, citando que a infecção do ser humano teria acontecido por meio de um animal intermediário, tese considerada “provável ou muito provável” pelo relatório da OMS.
“Nenhuma epidemia ou pandemia teve origem em laboratório. Nenhuma, zero, inclusive as grandes, como a de 1918 [gripe espanhola] e a de 2009 [gripe suína]. Então não tenho elementos para crer, até que se prove, que essa pandemia surgiu de um laboratório. Se eu tivesse que apostar, e nesse caso é uma aposta mesmo, apostaria em uma origem zoonótica da pandemia: o vírus circula em animais e em algum momento alcança o ser humano. A maior parte dos vírus não consegue se adaptar aos seres humanos, mas a cada cem anos um deles vai se adaptar e fazer um estrago, como está fazendo agora.” Embora minimize as chances do surgimento do Sars-COV-2 por um acidente de laboratório, Flávio Guimarães da Fonseca avalia que, se confirmada a hipótese, novos protocolos de segurança para a condução de pesquisas com organismos “ultrapatogênicos” deverão ser implementados. “Não acho isso ruim, é importante. O Brasil não tem uma tradição de investimento em ciência, teria que investir mais em sistemas de segurança e isso poderia forçar a criação desse tipo de estrutura”, aponta, afirmando, no entanto, temer que essa descoberta possa prejudicar a credibilidade da ciência. “Isso respinga em todos nós, na credibilidade científica internacional. Hoje, a China é um país que tem uma liderança científica ao lado dos Estados Unidos, é um país que produz ciência e, como tal, produz ciência de qualidade e publicada em jornais de qualidade. Um fato desses vindo à tona como um produto de erro de laboratório, por exemplo, certamente respinga em todos nós de uma forma geral. Claro que há diferentes pessoas, diferentes convicções e diferentes formas de encarar, mas no global há um prejuízo.”