O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, pediu por uma zona de exclusão aérea em diversas vezes ao longo das últimas semanas, desde que a Rússia invadiu seu país, em 24 de fevereiro. Entre pronunciamentos diários em vídeo postados nas redes sociais e discursos a parlamentos de países como Canadá, Estados Unidos e Alemanha, o chefe de Estado buscou convencer as nações da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a implementar a medida, e chegou a adotar um tom agressivo, afirmando que a culpa das mortes de civis ucranianos seriam da aliança ocidental por se recusar a estabelecer a zona, cujo nome é bastante explicativo: ela serve para impedir que aviões ou helicópteros de uma determinada nacionalidade estejam nos céus de outro lugar.
Em tempos de paz, uma zona de exclusão aérea pode ser determinada por um governo de forma localizada em seu próprio território, no entorno de hospitais ou de locais onde grandes eventos estão sendo realizados, de forma provisória ou permanente. Por exemplo, o Peru recorreu a este expediente nas proximidades da cidade histórica de Machu Pichu, e o Japão, no entorno da usina de Fukushima, onde um acidente nuclear ocorreu em 2011. Em tempos de guerra, porém, a intenção manifesta é de proteger a população civil de ataques e garantir corredores humanitários. “Ela é utilizada em conflitos internacionais para evitar que se tenha circulação de naves do inimigo naquele território, mas na prática é muito difícil de ser respeitada, porque uma guerra pressupõe a invasão do território alheio”, explica Roberto Uebel, doutor em relações internacionais e professor da ESPM. Isso significa que é necessário abater naves consideradas inimigas – a ação precisa ser executada por quem tem poderio aéreo para se contrapor àquele país hostil. No caso da Ucrânia, a zona teria que ser aplicada pela Otan – aliança militar que conta com os Estados Unidos e outros 29 países –, que disputaria a supremacia nos céus com a Rússia. Até o momento, a organização não demonstrou vontade de atender ao pedido, por temer uma escalada na guerra.
Zonas de exclusão aérea já foram utilizadas em outras ocasiões, como nas guerras da Bósnia e Herzegovina, para evitar bombardeios de aeronaves sérvias, entre 1993 e 1995. Outro caso foi em 1991, quando os aviões do Iraque foram proibidos de sobrevoar o norte do país, área de população curda, e o sul, habitado por muçulmanos xiitas, para que não mirassem nas populações destas minorias com armas químicas, como o regime de Saddam Hussein havia feito anteriormente. Em 2011, o alvo foi a Líbia, como forma de enfraquecer o ditador Muammar Gaddafi, que enfrentava uma revolta armada no contexto da “Primavera Árabe”. A diferença para estes três casos é que os países não tinham capacidade de escalar a guerra e enfrentar a Otan como a Rússia tem.
“É tão radical do ponto de vista de afronta quanto você colocar soldados da Otan dentro da Ucrânia para o combate”, define Igor Lucena, doutor em Relações Internacionais na Universidade de Lisboa e membro da Chatham House, think tank britânico em relações internacionais. “Se torna praticamente uma declaração de guerra, porque efetivamente você teria baterias antiaéreas que poderiam derrubar aviões russos. Envolveria vários países, então o risco de se tornar um conflito mundial é muito grande. A gente veria uma escalada, o que não é o objetivo de nenhuma das partes”, acrescenta o pesquisador.
Apesar do nome, uma zona de exclusão aérea também poderia levar a guerra a aumentar no solo e nos mares. “Uma peça de artilharia antiaérea também pode ser bombardeada. Ela emite uma frequência que é detectada pela aeronave, e o piloto sabe que pode vir a ser derrubado. Então, ele vai atacar a bateria para eliminar o risco. Os navios também têm sistemas antiaéreos bastante modernos por não terem como se esconder, e no caso de porta-aviões, as aeronaves decolam para protegê-lo. Há muito espaço para uma escalada de conflito”, explica o coronel da reserva da Força Aérea Brasileira Jorge Schwerz, que foi líder de Esquadrão de Ataque da FAB e hoje coordena o canal do YouTube “Ao Bom Combate!”. A Rússia emprega forças navais no Mar de Azov e no Mar Negro, ambos no sul da Ucrânia, e tenta dominar as cidades portuárias da região, como Mariupol e Odessa.
De acordo com o coronel, apesar dos meios aéreos russos terem realizado alguns dos ataques mais efetivos até agora, principalmente com helicópteros, o foco ainda está no solo. “No terreno, as tropas estão avançando sem pressa e cercando áreas, como os portos no sul, a região de Donbas, e indo em direção a Kiev, com manobras para cortar o suprimento das tropas inimigas. Não estão dando prioridade para o meio aéreo, mas buscam atacar os centros de comando e controle ucranianos com mísseis, para a defesa aérea ficar limitada. O Zelensky pede a zona como uma questão humanitária, mas isso pode ser visto como propaganda de guerra, e ele pode estar buscando dar fôlego para a própria tropa, para ganhar força no chão”, comenta Schwerz.
Caso a zona de exclusão aérea fosse estabelecida, muitos caminhos poderiam ser previstos para que o conflito aumentasse: a Rússia poderia considerar atacar bases na Polônia ou outros países fronteiriços de onde partiriam as aeronaves da Otan, ou a Otan poderia decidir atacar bases russas de onde são lançados os mísseis de cruzeiro contra o território ucraniano. “Esses mísseis são supersônicos, não podem ser derrubados no ar. A Rússia tem mísseis da família Kalibr, parecida com o Tomahawk, que voam em baixa altura, tem grande precisão e podem ser lançados de navios, aeronaves e do solo. Assim, poderia ser necessário atacar essas bases. Muitos pequenos fatores podem implicar numa escalada”, analisa o coronel da reserva. Segundo ele, os aviões russos têm capacidade de combater os da Otan em bom nível.
INTERESSES DO POVO
No último dia 7 de março, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, declarou que uma zona de exclusão aérea não é do interesse de ninguém, nem mesmo do povo ucraniano, apesar dos pedidos de Zelensky. Os especialistas ouvidos pela Jovem Pan concordam com a afirmação do principal nome da política externa americana. “Afetaria a logística de atendimento humanitário à Ucrânia, de entregas de medicamentos, de alimentos, aeronaves de apoio para a retirada de refugiados na fronteira da Ucrânia, então nesse sentido ela não é viável de ser aplicada”, avalia Uebel, da ESPM. “O conflito militar seria maior, a incursão de tropas russas seria maior, o número de baixas seria maior; isso iria atrapalhar inclusive a chegada de mantimentos humanitários, tornaria tudo mais difícil. E seria desnecessário em meio às negociações de paz que estão acontecendo”, diz Lucena, da Chatham House.
Outro ponto em comum é que todos consideram que a zona de exclusão aérea não será adotada. Mas enquanto Uebel e Lucena dizem que não veem um cenário crível para que a medida seja tomada, Schwerz não descarta. “É bastante difícil, mas os discursos emotivos do Zelensky chamam atenção, e perdas civis sempre são usadas para propaganda de guerra. Eu achava improvável o conflito, mas aconteceu. A gente sabe como uma guerra começa, mas não como termina”, pondera o aviador.