‘Vi cadáver que ficou lá por três dias’, diz diretor que se infiltrou na Cracolândia para filme

Cracolândia, no centro de São Paulo, concentra milhares de usuários de droga e barracas do tráfico

Há seis anos, o cineasta e diretor Edu Felistoque estava andando pelo centro de São Paulo à procura de músicos de rua para uma série de TV, quando chegou à região no entorno da Alameda Cleveland, no centro de São Paulo, onde fica localizada a Cracolândia. “Quando vi aquela loucura, eu imediatamente fiquei comovido com aquela cena dantesca, aquele inferno a céu aberto”, conta. Felistoque, então, deixou a barba e o cabelo crescerem e resolveu passar os próximos meses infiltrado no fluxo para entender o que acontecia ali. Ele ouviu especialistas, psiquiatras, agentes de segurança, funcionários do poder público, membros de ONGs e usuários de crack que vivem na região para debater porque é tão difícil encontrar uma solução para a Cracolândia. Os entrevistados também discutem a atuação truculenta da polícia nas operações e os programas implantados pela prefeitura, como o “De Braços Abertos”, do então prefeito Fernando Haddad (PT), que gerava empregos e fornecia moradia em hotéis da região. O resultado é um documentário de uma hora e meia, lançado nas plataformas de streaming na semana passada. 

Para o diretor, o filme mais pergunta do que responde. “A intenção é essa, refletir. Com essas perguntas, a gente consegue encontrar as respostas, mas temos que fazer essas perguntas para as pessoas certas, não só para os especialistas, e sim para quem vive isso”, afirma. As entrevistas do documentário são conduzidas pelo cientista político Reni Ozi Cukier, que hoje é deputado estadual pelo Podemos. Felistoque, no entanto, nega que as questões abordadas sigam uma ideologia de direita. “Hoje eu recebo críticas dos dois lados. Fui livre de qualquer tendência e de qualquer ideologia. É uma irresponsabilidade achar que só a direita vai ter a solução, ou que só a esquerda. Isso chega a ser patético. Não é dividir os métodos de resolução do problema, é unir”, analisa. “Eu ainda acho algumas coisas que o Heni fala no filme super coerentes, outras eu discordo. Não acho que a violência vai servir para nada”, completa.

“Não quero mais falar do atentado que sofri”

Durante os anos que passou frequentando a Cracolândia, Felistoque viu muita coisa. O cineasta conta que estava conversando com uma mulher e, quando se distraiu, ela injetou uma seringa nas costas dele. “Toda vez me perguntam do atentado que eu tive. Eu não quero mais falar do atentado porque desfoca do problema maior, que é a Cracolândia. Pior que essa da seringa nas minhas costas era ver as mães amamentando e fumando crack. Ou outras mães que iam para lá resgatar os filhos e ficavam dias acampadas, chorando, sendo extorquidas pelos traficantes”, conta. “Vi um cadáver durante três dias ali. O cara matou outro em uma briga e ficou lá, ninguém mexeu, a não ser quando começou a cheirar mal e tiraram ele. Essas são cenas que eu vi lá. Esse tipo de coisa me chama mais atenção do que o atentado”, disse. 

Felistoque e sua equipe ainda filmaram no Canadá, Estados Unidos, Noruega e outros países para mostrar como o problema é resolvido no exterior. Em Oslo, por exemplo, há salas de consumo assistido de drogas com profissionais de saúde disponíveis a todo o tempo. O diretor afirma, no entanto, que a maioria das políticas implantadas em outros países não funcionaria no Brasil por causa da presença do crime organizado. “Aqui, mesmo se a gente abrisse esse tipo de sala para o uso controlado da droga, o comando ia dar o jeito de sempre cobrar mais barato e atrair aquelas pessoas para lá. Eu mostro isso no filme e afirmo: essas pessoas que estão lá não compram a droga, elas recebem a droga dos traficantes para servirem de escudo humano”, explica. 

Questionado sobre a maior conclusão que tirou após finalizar o filme, Felistoque diz: “É patético o Estado deixar um problema de saúde pública virar uma questão de polícia”.  Para o diretor, a questão da Cracolândia não pode ser pensada apenas de uma forma coletiva. “Antes de pensar em um problema coletivo, é preciso conversar com um a um, entender. Se você não entende o problema pessoal dessa pessoa, nenhum programa social vai conseguir”, ressalta. Ele também cita a descontinuidade das políticas públicas municipais como um dos maiores problemas. “Chega um governo, lança um programa, e o próximo não dá continuidade. É só manter a continuidade do que está dando certo, não importa se é de esquerda ou de direita. São várias soluções dos dois lados que, juntas, dão certo. Mas não estou levantando isso como a grande solução. Eu ainda continuo perguntando.”


Fonte: Jovem Pan

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