Experimentos e racismo: Especialistas analisam a resistência de negros dos EUA à vacina da Covid-19

Falta de uma tradição vacinal e o período curto para desenvolvimento dos fármacos contribuem para as desconfianças

Nas últimas semanas, uma discussão ganhou as redes sociais: a resistência de parte da comunidade negra dos Estados Unidos à vacina contra a Covid-19. Longe de ser causada por um movimento antivacina – ou negacionista da ciência – a situação expõe as inseguranças daqueles que sempre se viram às margens dos olhos do Estado. O assunto foi abordado pela psicóloga brasileira Mara Gomes, que vive atualmente em Atlanta, capital da Geórgia. Em um vídeo divulgado no Tiktok, ela cita como a negação e a desconfiança da cantora Nicki Minaj com o imunizante gerou um espanto nos brasileiros. Isso porque, em setembro, a rapper americana afirmou que não se imunizou porque um amigo de seu primo, em Trinidad e Tobago, teria ficado impotente e com os testículos inchados pela vacina. A declaração foi desmentida pelo ministro da saúde do país e rebatida por autoridades britânicas e norte-americanas, com a Casa Branca se oferecendo a ligar para a cantora e esclarecer suas dúvidas. A visão de Minaj, no entanto, não é incomum entre os norte-americanos. Mara Gomes explica que outros cidadãos também têm resistências à vacina por um desconfiança no Estado, motivada por testes realizados no passado.

“Na cidade de Tuskegee, cerca de 400 homens negros foram chamados para participar de um estudo contra a sífilis. O sistema de Saúde e o governo dos Estados Unidos apoiaram esse experimento, que tinha a proposta de observar os efeitos da sífilis se ela não fosse tratada. Mas esses homens não eram informados disso, muito pelo contrário”, afirma Mara Gomes na gravação. O estudo de Tuskegee, citado pela psicóloga como uma das razões para a desconfiança da população negra com a vacinação, aconteceu entre 1932 e 1972 na cidade que nomeia o experimento, localizada no Alabama. Na prática, o projeto de pesquisa pretendia avaliar a evolução da doença, livre de tratamento, não sendo uma cura para a sífilis, mas sim um estudo de observação. Segundo artigo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os participantes não eram sequer informados dos efeitos – a longo prazo – da patologia. Para os analisados, o diagnóstico divulgado era de “sangue ruim” e a contrapartida da participação era um suposto tratamento médico, uma refeição no dia dos exames e o pagamento das despesas com o funeral, em caso de óbito.

Ao fim do estudo, 100 homens negros morreram por complicações relacionadas à sífilis, 25 diretamente pela doença e 40 esposas das “cobaias humanas” foram infectadas, gerando 19 crianças nascidas com sífilis congênita. “A inadequação inicial do estudo não foi a de não tratar, pois não havia uma terapêutica comprovada para sífilis naquela época. A inadequação foi omitir o diagnóstico conhecido e o prognóstico esperado”, diz o professor José Roberto Goldim no artigo da UFRGS. No documento, ele menciona que, mesmo com as descobertas terapêuticas contra a doença na década de 50, os participantes continuaram sem acesso a qualquer tipo de tratamento. “Por isso, a gente não pode simplesmente julgar as pessoas que não acreditam na vacina da Covid-19, isso vai muito além da ciência, vai de uma desconfiança do governo e das práticas dele. Elas tomariam a vacina do Brasil, mas não tomariam a daqui”, afirma Mara Gomes.


Fonte: Jovem Pan

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