Bastaram três dias para que vinhedos seculares da França sofressem um dano imensurável até o momento. Entre a noite do dia 5 e a manhã de 8 de abril, uma inesperada onda de frio deixou as temperaturas abaixo de zero e fez com que camadas de gelo se acumulassem sobre as vinhas. O acontecimento não é inédito, mas certamente foi um dos piores dos últimos 100 anos, a ponto do governo de Emmanuel Macron decretar desastre agrícola e prometer um auxílio emergencial aos produtores. De acordo com o sindicato dos vinicultores, 80% de todas as regiões vinícolas francesas foram afetadas, do Vale do Loire a Provence e de Bordeaux a Borgonha. Champagne e Cognac também foram atingidas, ainda que em proporções um pouco menores. As perdas totais foram estimadas em dois bilhões de euros pelo ministro da Agricultura, Julien Denormandie. O negociante de vinhos e professor da École du Vin de Bordeaux, Guillaume Turbat, explica que o acontecimento é ainda mais grave porque houve uma onda de calor igualmente inesperada no final de março, com termômetros marcando mais de 20°C, que antecipou a primavera europeia e estimulou um florescimento precoce das videiras. Semanas depois, esses brotos promissores acabaram sendo danificados pelo frio, que chegou a -7°C. “A consequência disso ainda é incerta, teremos de esperar os próximos dias e semanas para ver a quantidade de brotos que sobreviveram. Porém, já podemos afirmar que esse ano teremos uma produção de vinhos muito reduzida ou até zerada, dependendo da região. Isso significa que ao invés de termos de seis a oito cachos por videira, teremos de três a quatro, o que vai impactar muito no preço dos vinhos”, afirmou.
Maximilien Olio, diretor do conglomerado de cinco vinícolas La Compagnie des Vins d’Autrefois, confirmou que a produção da sua empresa foi fortemente impactada. “Estamos prevendo perdas de 80% a 90% nas produções dos vinhos brancos e 50% nos tintos. Isso porque as uvas Chardonnay, usadas nos brancos, amadurecem mais cedo do que as Pinot Noir, usadas nos tintos. Além disso, sabemos que quando a geada destrói os brotos das videiras, a colheita seguinte geralmente também é menor. Por isso, já estamos presumindo que a safra de 2022 será pequena”, ponderou. O herdeiro da vinícola da Borgonha Domaine Louis Michel & Fils, Guillaume Michel, relata que o clima ainda é de tensão na França porque há risco de geada pelas próximas duas semanas. “Fomos muito prejudicados. É um pouco cedo para fazer uma estimativa da perda, mas já sabemos que alguns lotes foram 100% atingidos, sendo que a estação gelada não acabou e vai continuar até meados de maio. Estamos bastante acostumados com problemas de geada aqui em Chablis. Desde a década de 1960 praticamos podas tardias e protegemos os nossos terrenos. Porém, esse ano a geada foi generalizada e inclui zonas que nunca tinham congelado. Foi aí que vimos que nossa proteção é limitada, já que é tecnicamente difícil cuidar de toda a superfície”, desabafa.
Na tentativa desesperada de contornar a situação, os vinicultores franceses apelaram para uma técnica milenar: acender velas e até fogueiras ao lado das vinhas para mantê-las mais aquecidas. As imagens de milhares de chamas acesas durante a noite se tornaram o símbolo da crise enfrentada pelos produtores de vinho. No entanto, Guillaume Turbat menciona outros métodos imediatistas que foram adotados para salvar as plantações, da simples pulverização de água sobre cada broto ao sofisticado uso de turbinas e até de helicópteros, que estimulam a circulação de ar quente e podem ajudar a prevenir as geadas. Porém, essas medidas apenas remediam um problema maior causado pelo aquecimento global. “Percebemos que esses episódios extremos provavelmente estão relacionados com as atuais mudanças climáticas, que colocam a viticultura em risco. Nos últimos anos, estamos tendo invernos amenos em meados de março, que fazem com que as vinhas comecem a crescer, e depois quedas bruscas de temperatura e geadas no início da primavera, em abril. Por isso, estamos fazendo investimentos em equipamentos de proteção e tentando desenvolver plantas mais resistentes”, conta o produtor de vinhos Maximilien Olio. O sommelier Guillaume Turbat afirma que já estão sendo estudadas formas de manipular o ciclo das videiras. “Estão pesquisando maneiras de fazer com que os brotos apareçam mais tarde, para limitar o risco deles serem destruídos por geadas, e que a colheita aconteça mais cedo, para limitar também o risco de ondas de calor. Essa pode ser uma solução adaptada para o futuro, para essas condições novas impostas pelo aquecimento global”, explicou.
O revés meteorológico coroou uma crise anterior no mercado de vinhos franceses. O primeiro golpe veio de forma inesperada em 2019, quando a França aprovou uma lei que criava um imposto de 3% sobre serviços digitais. Apesar da legislação não mirar especificamente as empresas dos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump interpretou que as novas regras afetavam principalmente as gigantes da tecnologia do Vale do Silício. Como a França não possui um número significativo de empresas desse ramo, Trump decidiu mirar onde doeria mais: a retaliação veio na forma de um aumento nas taxas sobre os vinhos franceses, que tinham um mercado consumidor importante entre os norte-americanos. Em 2020, a pandemia do novo coronavírus provocou o fechamento de restaurantes e a diminuição do poder aquisitivo. À medida que o consumo de bebidas alcoólicas despencava, os vinicultores despejavam galões inteiros de vinho e champanhe ralo abaixo. “A situação foi bem difícil porque vendíamos especialmente para restaurantes na França e no Reino Unido. Conseguimos limitar as perdas diversificando o painel de parceiros, mas ainda assim a situação não foi nada saudável para os negócios”, conta Guillaume Michel, dono da vinícola Domaine Louis Michel & Fils. O presidente da exportadora de vinhos franceses Chez France, Philippe Ormancey, analisa que a Covid-19 levou as vinícolas a repensarem o seu modelo de distribuição, dependendo menos de hotéis e restaurantes e mais de supermercados e lojas online. Segundo ele, para quem soube se adaptar, o resultado final foi de 5% a 10% de queda nas vendas. “A mais afetada pela pandemia foi mesmo a região de Champagne. Com menos festas, casamentos e outros tipos de eventos, houve uma diminuição de 20% a 30% nas vendas do produto em todo o mundo”, afirma. Felizmente, a geada do início do mês não destruiu as vinícolas da França para sempre, conforme tranquilizou Maximilien Olio: “Temperaturas de -10°C podem sim matar as vinhas, mas isso é muito raro. O que aconteceu nas últimas semanas não deve causar danos permanentes às plantações”.
Fonte: Jovem Pan